terça-feira, 21 de fevereiro de 2012


A Gente se Acostuma

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ver vista que não sejam as janelas ao redor.
E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma e não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E, à medida que se acostuma, se esquece do sol, se esquece do ar, esquece da amplidão.
A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos.
E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
E não aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: “hoje não posso ir”.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita.
E a lutar para ganhar com que pagar. E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes.
A abrir as revistas e ler artigos.
A ligar a televisão e assistir comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam à luz natural.
Às bactérias de água potável.
À contaminação da água do mar.
À morte lenta dos rios.
Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua o resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.
A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele.
Se acostuma para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(Marina Colassanti)


Se existe amor, há também esperança de existirem verdadeiras famílias, verdadeira fraternidade, verdadeira igualdade e verdadeira paz. Se não há mais amor dentro de você, se você continua a ver os outros como inimigos, não importa o conhecimento ou o nível de instrução que você tenha, não importa o progresso material que alcance, só haverá sofrimento e confusão no cômputo final. O homem vai continuar enganando e subjugando outros homens, mas insultar ou maltratar os outros é algo sem propósito. O fundamento de toda prática espiritual é o amor. Que você o pratique bem é meu único pedido.

Dalai Lama